Arlindo Bellini

O velho carreiro, ‘seo’ João das Mercês de Castro, mas que ficou conhecido por João Carreiro, por manter o seu velho carro de bois, com 4 juntas dos melhores animais, como se tivessem sido escolhidos a dedo entre a boiada do compadre Felisbino, cujos garrotes cobriam boa parte da imensa invernada da fazenda Capoeirão do Grotão. Mantinha um zelo e trato para com a boiada, parecendo até que eles sabiam de quem estava no tratamento, quando ‘rastojos’ de milho, sal a vontade, água pura e cristalina, sem contar que todo final de semana ele escoava seus bois de carro.

João Carreiro era um caboclão muito forte e destemido. Não enjeitava serviço, mesmo que fosse dos mais pesados até os mais difíceis, quando muitas vezes viajava por semanas para entregar a carga que fora a ele confiada.

Nascido pelas bandas da fazenda Matão (com divisas das Minas Gerais), João Carreiro mantinha família bem composta pela esposa e seis filhos: 3 homens e 3 mulheres, cujos nomes foram escolhidos por sua esposa, já que o marido pouco tempo tinha para dar nome aos filhos. Até mesmo os registros das crianças foram os padrinhos, que quando seguiam para a cidade estavam incumbidos de registrar os que tinham nascidos lá naquele fundão de mundo. Nem sempre as datas condiziam com os nascimentos, mas isso tinha pouca importância, pois o quesito maior era que as crianças tinham um nome, data de nascimento e suas origens, mesmo que de antepassados mais que trabalhadores, que também sabiam enxugar o suor de quando estavam na capinação do mato pelas ruas de imensos cafezais.

Muitos lhe perguntavam a idade, mas ele sempre tinha uma resposta na ponta da língua: ‘E para quê saber de quantos anos a gente tem, se um dia vai morrer mesmo?’ Não se zangavam com a resposta do velho carreiro, quando o mesmo estava desocupado de suas obrigações de conduzir seus bois de carro.

A bem da verdade, os bois do João Carreiro tinham nome. E eles atendiam muito bem quando o dono os chamavam pelos nomes: Marelo, Viçoso, Mestiço, cabrito (pela sua magreza mas de uma força descomunal), Cojote, Leão, Vermeio e Curisco. A pelagem dos animais sempre bonita e vistosa, sem vestígios de carrapatos, pois ele sabia temperar dosagens para a matança dos bichos que tanto infestavam as pobres e indefesas criaturas, a não ser suas lambidas ou abanar o rabo como para se defender das moscas irritantes e nefastas.

Certa vez ele empreitou para tirar café no imenso cafezal conhecida Fazenda Martinzão, propriedade do saudoso Sr. Herbert Schnitzer (situada pelas bandas do distrito de Barão Ataliba Nogueira), propriedade cultivadora de milhares de pés da famosa rubiácea  que, em tempos passados era a maior riqueza daqueles fazendeiros que sabiam como cuidar dos seus cafezais, como a arruação, a poda o chegar terra, a catação dos grãos maduros para que obtivesse um melhor preço na hora da venda da sacaria que estava armazenada na grande tulha.

Combinado o preço, teve início o árduo trabalho de carregar a sacaria e descarregá-la no terreirão da fazenda para a secagem, mas antes tendo recebido a lavagem para tirar a terra e as impurezas, como gravetos e folhas dos pés. Até mesmo alguns bichinhos vinham na sacaria e o cuidado era então redobrado.

Os carros de bois pequenos, ao máximo carregavam 30 sacas de 80 litros. Já o seu grande carro com 4 juntas de bois de primeira, a carga era maior, quando bem acomodada a sacaria, atingia a contagem de oitenta. Mas ele era paciencioso, não forçava os bois, procurando desviar de atoleiros e buracos nas estradas de chão batido. Começava a empreitada bem cedo, bem antes do Sol nascer, quando o mesmo estivesse apontado pelas montanhas das redondezas, lá estava ele seguindo em direção dos montes das sacarias. Para o serviço tinha ajuda de dois camaradas da fazenda empreitada. Dois rapazes bem sacudidos, como ele era. Não demorava e a carga estava feita e tinha início o carrear compassadamente, não medindo o tempo que gastaria do cafezal até o grande terreirão, onde mais trabalhadores estavam com a lida dos grãos de café.

De vez em quando João Carreiro era incumbido de transportar mudanças, ou os ‘trens’ como era costume dizer dos móveis e utensílios da casa. Eram colonos que se mudavam para outras fazendas, sempre na esperança de que dias melhores estivessem vindo de encontro e também para poder colocar os filhos na escola, pelo menos para aprender a ler e escrever e fazer contas, para que muitos não lhe passassem a ‘perna’, um costume usado naqueles tempos de outrora.

As mudanças consistiam em sua maioria de pequenos móveis, utensílios de cozinha, gaiolas com passarinhos, viveiros com aves, cachorros que seguiam ao lado da condução. E muitos sacos de arroz, feijão, milho, pipoca e aquele mundaréu de ferramentas como enxadas, enxadões, picaretas, chibancas, foices, machados, podões. E cabos de enxadas já secos e prontos para serem usados quando aqueles estavam encabados parecessem de tanto capinar nos leitos dos roçados ou nas ruas dos cafezais. Até mesmo pequenas enxadinhas estavam na carga, quando as crianças com seus seis ou sete anos já as tinham, quando seguiam seus pais para a roça e assim deviam aprender a puxar o ‘guatambu’ ou a ‘sapuia’, madeiras boas e apropriadas para o encabamento das ferramentas da roça.

Muitos retirantes ou aqueles colonos, davam com os ‘burro n’água’, quando pensavam em melhorar de vida, mas pioravam e o remédio era calçar a cara e voltar para a mesma casinha de 4 cômodos, com a permissão do antigo patrão e com as ordens dos administradores e fiscais. Voltavam felizes da vida, pois ao saírem do lugar, deixaram as saudosas lembranças em torno de parentes, amigos, compadres e conhecidos. Pois na nova morada tudo era diferente, bem como se acostumar com o pessoal, muitos de ‘cara fechada’, nem proseando, mesmo quando puxassem conversa ou oferecesse fumo para o pito de barro. Era então, pelo motivo que voltavam mais felizes da vida quando se mudaram.

Certa ocasião João Carreiro empreitou uma roça de milho. Eram várias tarefas, milho amarelão, graúdo. Bom de negócio. O dono do roçado, depois da combinação, propôs ao carreiro, que se ele conseguisse pegar melhor preço do milho, dividiriam meio a meio.

Numa manhã bem cedo, João Carreiro, com o carro carregado de sacos de milho debulhado, seguiu destino até Monte Sião. Por lá chegando foi direto aos moinhos, velhos negociantes do produto. Abriu um saco e tirou um punhado de milho. Esparramou nas mãos, como a dar melhor valor aos grãos. Perguntou quanto lhe pagaria pela sacaria. Milho amarelão, do ‘bão’. O negociante deu o preço. Ele falou que ia consultar seu concorrente. Que fosse, disse o homem. Foi e voltou. Fechou negócio, recebendo em mil réis (moeda circulante na época, pelos idos dos anos 20). Passou na venda, fez umas comprinhas de sal, farinha de trigo, querosene, dois pares de sapatão, fumo de corda, pedras para o isqueiro. Comprou também um canivete novo. Gastou muito pouco do muito que tinha recebido e sabendo que o que tinha passado do combinado receberia a metade do dinheiro.

Chegou em casa de noitinha. Descarregou a compra, foi soltar os bois num fechado bem grande, mas antes forrou seus estômagos com farelo de milho e água corrente.

No outro dia cedo foi acertar as contas com o ‘patrão’, ou o sócio com quem tinha feito um trato e cumprido o mesmo. Recebeu uma boa quantia e os agradecimentos pela venda bem feita que tivera sido efetuada na vizinha cidade mineira. E o negociante lhe falou, que quando tivesse nova partida de milho podia seguir até o seu moinho e que a negociação seria feita de bom agrado.

Não demorou nem uma semana e uma nova partida de milho estava carregada em seu carro de bois e com o mesmo trato, só que dessa vez, era outro meeiro de sabendo do bom negociante, quis lhe entregar a safra para que fosse vendê-la naquela cidade e a bom preço como tinha obtido naquela viagem passada.

Seguiu destino para Monte Sião, mas antes foi saber do outro comprador quanto lhe pagava pela sacaria de milho. Combinou que o que o outro dono do moinho lhe pagasse ele cobriria a oferta. E assim foi feto, recebendo uma boa quantia pela venda da carga de milho.

Novas compras na venda e desta vez comprou sapatos para a esposa e para os filhos e netos, já que alguns de seus filhos tinham casados e a netaiada veio de encomenda. Naquela venda, tendo visto uma espingarda cartucheira, de dois canos, calibre 32, belga, resolveu comprá-la, bem como cartuchinhos, pólvora, espoleta e chumbo 7, para passarinhar, como de costume aqueles roceiros gostavam da prática do esporte (hoje em dia ele está proibido no território nacional. Haja vista a quantidade de porcos do mato e capivaras que infestam as propriedades, ceifando a torto e direito roças de milho, capão de cana, plantação de mandioca e batata doce. Um inferno que os roedores estão causando aos proprietários rurais. Só falta mesmo tais animais rumarem para as cidades e causar danos maiores com o homem). Levou doces para as crianças. E como despedida foi até a velha igreja e pondo-se de joelhos agradeceu a viagem e sua vida como carreiro. Rezou diante da imagem milagrosa de Nossa Senhora da Medalha, padroeira daquela cidade mineira.

Voltou para casa mais feliz do que a primeira viagem.

Com o passar dos anos, João Carreiro se tornou um forte negociante de cereais. Aposentou o seu carro de bois, colocando-o num grande rancho coberto com telhas comuns (aquelas que eram conhecidas como telha de coxa, por serem moldadas na parte de cima das pernas). Sua boiada ele a soltou no pasto, com muitos alqueires, mas de vez em quando ia a cavalo para dar um trato diferente além do capim amarelo ou o catingueiro. Era só chamar que seus bois vinham troteando em sua direção. Apeava do animal e começava a ‘conversar’ com seus bois de estimação. Alisava a pelagem, segurava em seus chifres, dava-lhe ração na mão. Eles pareciam entender que estavam sendo chamados para um novo serviço e ser atrelados na canga, par por par. Naqueles momentos João Carreiro chorava como uma criança quando lhe tiram um brinquedo ou quando não lhe dão uma guloseima. Passava horas em torno de seus bois. Relembravam o passado, quando em noites chuvosas ele estava pelas estradas lamacentas, atolando pelas valetas ou buracos nas estradas mal cuidadas. Lembrava saudoso quando contraiu matrimônio com aquela jovem da fazenda vizinha e com ela proporcionou filhos, em número de meia dúzia. Seus olhos se umedeciam, mas sentia uma felicidade sem par em seu coração.

Quando voltava para a casa sua esposa sabia que ele foi ‘visitar’ seus bois e com certeza tinha chorado, pois seus olhos mostravam uma vermelhidão. Mas não ‘raiava’ com ele, pelo contrário, lhe preparava a refeição com muito amor e carinho. Ainda mais sabendo que ele gostava de virado com ovos mexidos e torresmo bem gorduroso. Refogava couve ou almeirão que ele adorava de comer. Coava café bem adoçado com açucrão e seguia para o quarto para preparar a cama, pois naquelas ocasiões ele gostava de deitar cedo, nem beirando as nove horas. Dormia como uma criança… e sonhava… sonha com seu velho carro de bois, com seus bois bem cuidados e todos eles com os nomes Marelo, Viçoso, Vermeio, Mestiço, Cabrito, Coiote, Leão e Curisco…

… E foi dormindo que dali há alguns dias João Carreiro entregou sua alma a Deus…

Foi quando sua mulher foi chamá-lo, que o café já estava coado na mesa, com pão feito em casa e manteiga caseira, que levou um susto. Ele já estava frio e com seus olhos ainda abertos, como a enxergar pela última vez aquela que em vida foi sua esposa, sua companheira e mãe de seus filhos…

… O sino da capelinha repicava anunciando que alguém na fazenda tinha morrido. Quando souberam de quem se tratava, o patrão, deu ordem para que ninguém fosse trabalhar, mas que fossem velar quem em vida se desdobrou para ser um bom chefe de casa e um carreiro muito estimado e conhecido.

…Entristeceu a família, entristeceram seus amigos e parentes. A partir daquele dia sua boiada dispersou, pois não tendo mais ninguém que lhe cuidasse, debandou pelos capoeirões, sumindo para sempre…[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

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